6 February 2007

Crónica de Pedro Paixão

Natasha,
Ontem dei comigo enlouquecido a gabar-me de como era um perfeito caçador de beleza. Cheguei a casa deprimido não por me arrepender das palavras que disse mas por estar consciente da estranha e imprevisível direcção que a minha vida leva. Foi durante um jantar com um amigo que não via há muito. Bebemos um vinho que um enólogo descreveu saber a chocolate e groselhas, o que, felizmente, não era verdade. Estava com um pouco de febre – a minha gripe deste ano é perene. Via-se o rio a ser cruzado por barcos iluminados e indiferentes. Talvez tudo isto possa ajudar a compreender o que eu não compreendo: a minha raiva, a minha vaidade, a minha vontade de me justificar qualquer coisa de injustificável.Eu sei que não estou a ser claro. A questão é saber se posso.Começámos por falar do mundo. O meu amigo é tão pessimista quanto eu. Evocámos alguns horrores recentes. E depois eu refugiei-me na beleza. Fugi do mundo. O meu amigo ficou calado a ouvir-me. Não que já não me tivesse ouvido as mesmas histórias ou semelhantes mas deve ter ficado impressionado como o tempo torna as coisas mais urgentes, os sentimentos mais exacerbados, as necessidades mais imperiosas. É isso o tempo, arde à nossa frente. E quem busca, como eu, protecção na beleza é como quem num fogo procurasse o seu centro que não arde. É difícil de nomear algo de tão contraditório, efémero, simplesmente subjectivo, tão próximo do nada. Quem persegue a beleza condena-se a uma busca interminável e sem sossego. Mas é a maneira mais radical de escapar do mundo, e a mais corajosa, creio eu. O meu amigo não dizia nem que sim, nem que não. Limitava-se pacientemente a ouvir a última história que me torturava o coração.Mais vale isto do que falar de carros, dinheiro ou poder. Mais vale isto do que dizer mal de alguém julgando nesse instante tornarmo-nos melhores do que ela. Mais vale isto do que muitas outras coisas que se pensam habitualmente sem pensar em nenhuma. Mas quando cheguei a casa senti-me envergonhado. Pelo meu abandono das regras morais, pelo menos daquelas que podem ser defendidas por ambas as partes sem evocar estatutos de excepção. Pela minha vontade de vencer. Pelo meu desejo de que a beleza fosse minha e só minha e que dela dispusesse como quisesse durante o tempo que quisesse. Os outros não importavam. Os outros eram personagens num cenário, no meu cenário e tudo o que eu vivia era escrito por mim.Mas para além da raiva, da vaidade, da loucura havia a necessidade de me confessar e de obter o perdão do meu amigo, de alguém que trouxesse dentro de si um pequeno deus. Foi isto o que eu descobri quando cheguei a casa e não conseguia adormecer.O meu amigo ainda foi percorrer alguns bares da cidade e ainda dorme por certo enquanto eu te escrevo esta carta da qual te peço desculpa porque mais parece um mistério embrulhado num enigma, quando de facto nada disso é nem pretende ser, mas há coisas das quais não te posso falar abertamente porque tenho medo de te perder e mais simplesmente não o sei fazer.
teu, ao beijar as palmas das tuas mãos
pedro

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