29 December 2006

tudo o que interessa no mundo em papel marroquino


“Adoro as tuas cartas. Não tanto de as ler; mais de as receber. Adoro abrir a minha caixa de correio e ver o teu envelope no meio de outros vinte com contas para pagar. Adoro-te a ti. Conhecemo-nos faz hoje um ano, Verão de São Martinho a comer castanhas à volta de uma fogueira num acampamento. Parecia uma cena de um filme romântico foleiro, tu com uns amigos, eu apenas a passar em direcção à minha tenda. Ainda me lembro da tua voz, da sensação que me causou no corpo todo aquela voz a chamar-me, ia eu entretido com um cigarro acabado de enrolar (a minha diversão da altura, lembras-te?). Apresentar-me, sentar-me, concentrar-me nas caras do grupo, confesso que a minha atenção se virou, nos primeiros minutos apenas, para uma das tuas amigas, sentada à minha frente. Hoje nem do seu nome me lembro. Rapidamente, porém, os meus sentidos, especialmente a audição (a tua voz de mel) e o olfacto (o cheiro suave da tua pele) me guiaram a ti, a rapariga que reparara no meu ar triste (segundo contaste mais tarde) e me chamara para passar a noite com vocês. Muitos dos que nesse grupo se inseriam, não os voltei a ver, no entanto, para além de ti (claro!), um ou dois permaneceram na minha memória e passei a dar-me com eles. O melhor exemplo? O Zé, obviamente. Hoje em dia, como sabes, é o meu melhor amigo, mais uma coisa te devo...Lembro-me de que nessa noite nos divertimos como nunca; aproveitei para sair um pouco da minha má vontade de nascença, tu ajudaste-me, é certo; cantei músicas foleiras, dancei atrapalhadamente, ri de anedotas sem piada, contei histórias sem interesse só para manter o ambiente vivo, até que a maioria começou a adormecer, principalmente quando a cerveja se esgotou juntamente com as pilhas de um rádio com cassetes que para lá andava, e tu me pegaste na mão e me levaste. Andámos imenso, o cansaço parecia não nos atingir, perdemo-nos numa floresta e, sem explicação aparente, amámo-nos.
Já lá vão trezentos e sessenta e seis dias. Neste primeiro ano muito se passou. Muitos nos abandonaram: zangas, acidentes, mortes, lágrimas artificiais em alguns casos (...) Poucos sobreviveram: a viagem, confesso, não foi das mais fáceis, por vezes cheguei a ter medo, no entanto nunca abandonei o barco. Mais importante ainda, tu também não, permaneceste ao meu lado e ajudaste-me a não desistir. Mais uma coisa te devo...são tantas que já lhe perdi a conta. Garanto que te hei-de recompensar, e não apenas com um simples “obrigado”. Pensarei em algo que te surpreenda e obrigue a ficar a meu lado. Porque, no fundo, é só isso que eu pretendo: que fiques a meu lado. (...) Já te quis matar, e tu a mim, ambos já o confessámos, o tentámos até, porém voltámos atrás e ainda bem.(...) Adoro “picar-te”, provocar-te ao máximo para ver os teus limites. Dessa vez, atingiste mesmo o limite quando recitaste o meu poema preferido todo de cor em jeito de declaração de amor para me convenceres, e depois de não resultar subiste para o parapeito e agarraste-te a mim a dizer que morrerias comigo se fosse preciso. (...) Aconcheguei-me no teu colo e nesse dia maravilhoso fui eu a chorar, consciente ou inconscientemente, tanto faz. Nesse fim de tarde, tirámos fotografias um ao outro na praia que se encontra mesmo ao pé da tua casa.
Passou um ano. Por enquanto, não é altura de festejar, partiste faz hoje uma semana e só chegas daqui a dois dias. África, Marrocos (...) onde o cheiro da miséria se mistura com o aroma das especiarias, crianças, velhos, gritos (...) Nunca soubeste explicar porquê, mas sempre adoraste essa terra e sei que um dia vais abandonar esta cidade (...) Estou disposto a acompanhar-te (...) estou disposto a arriscar e partir contigo para que me mostres os verdadeiros segredos desse local maravilhoso. (...) Passado este ano, conheço-te melhor que ninguém, tu própria o dizes. Conheço cada centímetro do teu corpo e da tua mente. Conheço as tuas manias, os teus tiques, as frases, as ideias, as tuas disposições e, mesmo assim, através da tua arte surpreender-me a cada minuto que passa. O que, no fundo, mostra, que darmo-nos melhor seria impossível, pois o que há de mais fascinante que a surpresa, a novidade quando pensamos ter tudo sob controlo?
Passou um ano, não estás cá para festejar.
Eu sabia que não te esquecerias, o que eu não sabia é que ficaria tão emocionado com o facto de te lembrares.
Adoro as tuas cartas. Não tanto de lê-las, mais recebê-las. Ver o teu envelope no meio de outros vinte com contas para pagar. Esta última, que recebi hoje e acabei de reler há minutos foi diferente: adorei recebê-la, mas ainda mais lê-la. No meio de uma folha de papel ordinário marroquino (que tem um toque extremamente agradável), escrita com a tua caneta de tinta permanente, apenas uma palavra, somente uma palavra utilizaste tu para me mostrar que não te esqueceras apesar da distância a que te encontras. Com a tua angelical caligrafia e o cheiro das tuas mãos ainda envolvendo o papel, apenas e só a palavra “amo-te”.
Eu sabia que não te esquecerias.”

In Deus Morreu E Eu Não Fui Ao Funeral, João Rosas

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