8 November 2006

o que se quer


O QUE SE QUER

“Querer alguém, ou alguma coisa, é muito fácil. Mesmo assim, olhar e sentirmo-nos querer, sem pensar no que estamos a fazer, é uma coisa mais bonita do que se diz. Antes de vermos a pessoa, ou a coisa, não sabíamos que estávamos tão insatisfeitos. Porque não estávamos. Mas, de repente, vemo-la e assalta-nos a falta enorme que ela nos faz. Para não falar naquela que nos fez e para sempre há-de fazer. Como foi possível viver sem ela? Foi uma obscenidade. Querer é descobrir faltas secretas, ou inventá-las na magia do momento. Não há surpresa maior.
O que é bonito no querer é sentirmo-nos subitamente incompletos sem a coisa que queremos. Quanto mais bela ela nos parece, mais feios nos sentimos. Parte da força da nossa vontade vem da força com que se sente que ela nunca poderia querer-nos como nós a queremos. QUERER É SEMPRE A HUMILHAÇÃO SUBLIME DE QUEM QUER. Por que razão não nos sentimos inteiros quando queremos? É porque a outra pessoa, sem querer, levou a parte melhor que havia em nós, aquela que nos faz mais falta. É a parte de nós que olha por nós e que nos reconcilia connosco. Quanto mais queremos uma pessoa, menos nos queremos a nós...
Querer é mais forte que desejar, pelo menos na nossa língua. Querer é querer ter, é ter de ter. Querer tem mesmo de ser. (...)Desejar tem menos. É condicional. Quem deseja, desejaria. Quem deseja, gostaria. (...)Querer é querer ter e guardar, é uma vontade de propriedade; enquanto desejar é querer conhecer e gozar, é uma vontade de posse. O querer diminui-nos, mas o desejar não. Sabemos que somos completos quando desejamos - desejamos alguém de igual para igual. Quando queremos é diferente - queremos alguém com a inferioridade de quem se sente incapacitado diante de quem parece omnipotente. O desejo é democrático, mas o querer é fascista.
O que desejamos, dava-nos jeito; o que queremos fez-nos mesmo falta. Mas tanto desejar como querer são muito fáceis. (...) Há qualquer coisa que se passa entre o momento em que se quer e o momento que se tem. O que é?
«Cada pessoa, - dizia Oscar Wilde, - acaba por matar a coisa que ama». Mata-a, se calhar, quando sente que a tem completamente. Faz o que faz o caçador com a caça. (...) A verdade, triste, é que uma pessoa completa, a quem não falta nada, não é capaz de querer outra pessoa como deve ser. No momento em que se sente que tem o que quer, foi-lhe devolvida a parte que lhe fazia falta e passou a ter tudo em casa outra vez. É feliz, está satisfeita e deixou de ser inferior à sua maior necessidade. O ter destrói aquilo que o querer tinha de bonito. Uma necessidade ocupa mais o coração, durante mais tempo, que uma satisfação. Querer concentra a alma no que se quer, mas ter distrai-a. (...) É bom que se continue a julgar que aquilo de que se precisa é exterior a nós. (...) Quando se quer realmente, dar-se-ia tudo por ter. (...) É esta a violência. É esta a injustiça. Mas é esta também a beleza. (...) Ter o que se quis não é tão bom como se diz, nem querer o que se tem é assim tão mau. O segredo deve estar em conseguir continuar a querer, não deixando de Ter. Ou, por outras palavras, o melhor é continuar a ser querido sem por isso deixar de ter tido. O que é que todos nós queremos, no fundo dos fundos? Queremos querer. Queremos Ter. Queremos ser queridos. Queremos ser tidos. É o que nos vale: afinal queremos exactamente o que os outros querem. O problema é esse.”

Miguel Esteves Cardoso, in Os Meus Problemas

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